O Recife perdido

Eu era adolescente. O trajeto de ônibus, entre minha casa no subúrbio e a escola no centro do Recife, tinha um atrativo especial que era passar em frente a um dos mais belos casarões que já vi , na esquina das ruas Manoel Borba com Dom Bosco, no bairro da Boa Vista. Meio decadente, algo abandonado, mas ainda imponente. Não sabia a quem pertencia. Eu sempre dava um jeito de sentar à janela, de modo que pudesse apreciar o casarão, e minha imaginação se acendia com histórias românticas de antigas sinhazinhas em seus namoros escondidos, amores contrariados, casamentos arranjados, fugas espetaculares... quanto amor e sofrimento devem ter tido como cenário aqueles jardins, que certamente foram bem cuidados e agora estavam tomados por uma vegetação caótica. Outras vezes parecia-me ver a casa iluminada em dias de festa, os convidados apeando das carruagens ou dos primeiros automóveis que circularam na cidade – ricos, belos, felizes, circulando no jardim ou com as silhuetas entrevistas através das grandes janelas. Como eu queria ser um deles!

Um dia, um dos mais tristes da minha jovem vida, o trajeto para a escola me colocou diante de uma cena que não pude mais esquecer: o casarão jazia em escombros espalhados pelo antigo jardim. Notícias nos jornais diziam que ali seria construído um complexo ultramoderno de apartamentos, era o progresso, etc e tal. Em alguns meses surgiu um monstrengo de muitos andares e extremo mau gosto no lugar do belo casarão. Nunca mais fiz questão de sentar à janela daquele lado do ônibus, e até hoje evito olhar a feiíssima construção.

Foi a primeira perda que tive em relação ao Recife, onde outros belos casarões sistematicamente têm sido substituídos por prédios assépticos, estreitos, sem alma... vidas encarapitadas verticalmente, dominadas pela pressa, o consumo, a tecnologia, a ideia de progresso e modernidade... Não há mais lugar para a mansidão daqueles velhos jardins. Depois, já adulta, perdi a Casa Navio, que ficava em Boa Viagem, à beira mar, e era uma referência: “a gente se encontra em frente à Casa Navio”; “é logo ali, depois da Casa Navio”... as coisas sempre ficavam antes ou depois da Casa Navio. Até que a derrubaram, assim como derrubaram o Castelinho e o edifício Aquarius, também em Boa Viagem, este último um prédio em estilo art nouveu, que até inspirou um filme...Os casarões que sobreviveram foram transformados em pontos comerciais.

Ainda mais triste foi constatar que o poder público, que deveria preservar nossa história cultural e arquitetônica, foi responsável pela derrubada de igrejas, pontes, pórticos, prédios coloniais ,em geral para abrir avenidas...tudo em nome de uma modernidade sem alma, feita de concreto e aço, incapaz de acender a imaginação de algum adolescente, muito menos a minha que tenho a nostalgia de um Recife perdido no tempo e continuo evitando olhar para os monstrengos que foram dando lugar aos belos casarões da minha infância.

(Originalmente escrito em 15 de março de 2014)