José,

Eu estava tão magoada que só queria morrer de desgosto. Mas assim que escrevi pra você, que desabafei, percebi que morrer assim seria a maior besteira da minha vida, maior do que ter amado um sujeito tão medíocre, que não merece que mulher alguma morra por sua causa.

É, meu caro... faz uma semana que tudo mudou dentro de mim, mas esperei pra lhe falar porque, afinal, você bem que merecia sofrer ao menos um pouco, se sentindo responsável pela minha morte (se é que você é capaz de ter essa consciência...). Faz uma semana que venho me olhando no espelho, falando comigo, me tocando, me acarinhando, me refazendo, renascendo... Sinto que renasci, é isso. Estou viva e vou tratar de reconquistar tudo que abandonei por sua causa. Tenho certeza que a partir de agora minha vida vai ser mil vezes melhor do que a vida que eu levava ao seu lado.

Quando me encontrar não finja que não me viu, não desvie do caminho... Quero que me olhe nos olhos pra ver que eu já lhe esqueci e estou tratando de ser mais feliz do que antes. Como é bom não ter mais você no pensamento! Pena ter demorado tanto nessa relação... Mas, finalmente, o encanto acabou. Agora posso dizer, de alma lavada, como Reth Butler diz para Scarlet no final do filme E o vento levou: francamente, querido, dane-se!

Adeus, desta vez para sempre.

Maria

Vinha pelo corredor em direção ao meu quarto, que era o último. Avançava lentamente para a minha cama, que ficava em frente à porta. Eu, deitada, via apavorada a aproximação inexorável daquele corpo sem cabeça, passos arrastados, roupa em farrapos, braços pendentes a cada lado.

Eu tinha consciência de que era um pesadelo. Confusamente, deduzia que era resultado de comer demais no jantar e estar de barriga para cima, mas não tinha energia para reagir, para mudar aquele cenário ao mesmo tempo real e irreal. Se pudesse levantar, acender a luz... mas não conseguia me mexer Tentava gritar, mas só produzia uns grunhidos agoniados, enquanto pelo corredor estreito aquela coisa continuava avançando, avançando, avançando...

Lembrava que tinha fechado a porta do quarto com duas voltas de chave, mas agora simplesmente não havia porta, nenhuma proteção, minha casa não era mais meu porto seguro: minha cama estava diante de um vão aberto, e a coisa avançava sem parar.

Não sei porque, já que deveria estar dormindo, no meu pesadelo eu tinha um lápis na mão, e enquanto gritava “pare, não se aproxime”, sentindo que as palavras eram proferidas apenas na minha mente, pois a voz era só um estertor, num gesto incerto, incoerente e sem força, joguei o lápis na direção da coisa. E então a cabeça apareceu em cima do corpo, que nessas alturas já estava a apenas alguns passos da minha cama. O olhar..., o olhar daquela cabeça era terrivelmente fixo e vazio, parecia não ver nada mas eu sentia que estava me vendo... então, no auge do pavor, quando a coisa começava a estender as mãos em minha direção, o som misericordioso do alarme do celular me acordou.

Muito impressionada narrei o pesadelo para algumas pessoas, tentando interpretá-lo. Alguém viu ali um simbolismo da minha capacidade de proporcionar conhecimento, pois a cabeça da mulher (a coisa era uma mulher) apareceu ao ser atingida pelo lápis que eu joguei. Outra pessoa, talvez mais espiritualizada, concluiu que entidades estavam me mandando um recado: aquilo era um sinal de que eu devia mudar de casa, pois já não me sentia segura.

Aquela mulher... quem seria ela? Algumas ideias me ocorreram, entre pessoas vivas e mortas, mas desisti de buscar explicação temendo provocar a repetição daquele momento de terror. Porém o fato é que nunca mais me livrei da sensação de que a qualquer momento, durante a noite, a coisa vai estar me esperando no corredor, com seu terrível olhar fixo, apavorante. Aquela mulher... quem seria ela?